CONHECIMENTO CEREBRAL DESTACA SAÚDE!


"A POLÊMICA DA PÍLULA CONTRA O CÂNCER"
"A promessa de cura para todos os tipos da doença saiu do interior de São Paulo e se espalhou pelo Brasil. Mesmo sem ter sido estudada em seres humanos, a fosfoetanolamina move uma peregrinação de pacientes, com direito a campanha nas redes sociais. E a discussão em volta dela foi parar até em tribunais e no Congresso Nacional"


Por: Theo Ruprecht e Karolina Bergamo
         Robson Quinafélix e Mayla Tanferri (design)
         Deborah Maxx e Istock (fotos)

"Rafael Schmerling trabalha no Centro Oncológico Antônio Ermírio de Moraes. Luís Eduardo Zucca coordena as pesquisas clínicas do Hospital de Câncer de Barretos. Paulo Hoff dirige o Centro Oncológico do Hospital Sírio-Libanês. E os três confirmam que, hoje, quase não há paciente que saia da consulta sem perguntar sobre a fosfoetanolamina, desenvolvida nos anos 1990 no Instituto de Química de São Carlos (IQSC) da Universidade de São Paulo (USP). O pai do composto, o químico Gilberto Chierice, e outros cientistas acreditavam no poder da 'fosfo' em curar o câncer e passaram a disponibilizá-la para suas vítimas até 2014, quando a USP vetou a aplicação médica de quaisquer substâncias sem registro na Agência Nacional de Vigilância Sanitária, a Anvisa. Após a decisão, surgiram vários pedidos de liminares, em boa parcela aceitos pelo Poder Judiciário, de pessoas que alegavam se beneficiar da pílula azul e branca. Isso tudo fez estourar um debate intenso. De um lado, vêm a cobrança e o desespero dos doentes, amplamente expostos nas redes sociais. Do outro, pesam as críticas bem fundamentadas dos especialistas, que exigem estudos controlados em seres humanos para comprovar o verdadeiro efeito da droga."


"Não é que, do nada, a fosfo começou a ser distribuída a pessoas com câncer. Chierice e seu grupo revisaram a literatura científica, que desde 1936 associa a substância à doença. Eles também se desdobraram para sintetizá-la e, no começo dos 2000, publicaram investigações em culturas de células e roedores. 'Analisamos a aplicação em laboratório em modelos como leucemia, câncer de mama e melanoma', conta o farmacêutico Adilson Kleber Ferreira, que participou de alguns trabalhos com a molécula no Instituto Butantan, na capital paulista. 'Em um momento inicial, chamou a atenção o fato de ela afetar células tumorais sem quase agredir as sadias', lembra o pesquisador, hoje no Instituto de Ciências Biomédicas da USP."


"A história emperra aqui. Afinal, bons resultados em bichos não justificam o uso indiscriminado em gente. 'Muitas vezes, a toxidade observada em animais não é a mesma encontrada em seres humanos', esclarece o farmacêutico Wagner Ricardo Montor, professor da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo. 'Essas avaliações indicam o potencial terapêutico e possíveis efeitos nocivos, mas testes clínicos são imprescindíveis', arremata. A questão que, na história da fosfo, essa lógica foi invertida. Segundo os documentos apresentados até agora, a utilização em pessoas antecedeu as pesquisas em cobaias. É um risco - que nem pode ser mensurado devido à ausência de acompanhamento próximo.
Numa audiência no Senado do dia 29 de outubro, Chierice afirmou que havia uma parceria com o Hospital Amaral Carvalho, em Jaú (SP), a fim de testar o remédio. Ele diz que pacientes de lá receberam a fosfo dentro de padrões aceitáveis. A assessoria de imprensa da instituição confirma que, em 1996, foi firmado um convênio com a USP. Mas... 'O termo expirou em 2001 sem nenhum estudo com a fosfoetanolamina. (...) Não existem registros oficiais na instituição de testes em portadores de câncer com ela.' Chierice deu a entender que o hospital está mentindo e que, com o final do contrato, sentiu-se obrigado a seguir fornecendo as pílulas aos necessitados. Porém, não se estendeu sobre a acusação - tampouco apresentou pesquisas controladas com seres humanos. Nem ele nem seus companheiros."


"E OS INÚMEROS RELATOS DE MELHORA?"

"Eles impressionam até pela variedade de tumores que teriam sido rechaçados com a fosfo. Tanto que fizeram o advogado Dennis Cincinatus, do Rio de Janeiro, recorrer no Supremo Tribunal Federal (STF) de uma decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) que impedia sua mãe, acometida por um câncer de pâncreas que não respondia a outras terapias, de receber a fórmula. O ministro do STF Edson Fachin concedeu a ela o direito de receber a pílula da USP. 'Minha mãe tomava morfina de quatro em quatro horas. Agora não precisa mais e até consegue se levantar', descreve Cincinatus."


"Depoimentos como o de Cincinatus também convenceram o defensor público federal Daniel Macedo a ajuizar uma ação pedindo, entre outras coisas, que se crie uma estrutura capaz de suprir a demanda atual pelas cápsulas - o IQSC não tem condições de fabricar tantas. 'Há mais de mil liminares concedidas só na Vara de Fazenda Pública de São Carlos', diz Macedo. O processo está sob análise. Só que, mesmo diante de tanto furor, é vital dar um passo atrás e entender a razão pela qual a maioria dos cientistas insiste que relatos de caso, por mais empolgantes, não garantem a eficácia de uma droga."


"Primeiro porque os depoimentos positivos quase sempre se sobrepõem aos negativos. Várias pessoas que engolem uma pílula contra o câncer e não melhoram caem no silêncio ou, infelizmente, morrem antes de dar declarações. Segundo que sempre há um viés por parte de quem coleta e seleciona os testemunhos. Ora, um sujeito que deseja provar o potencial de um comprimido pode destacar os finais felizes. Terceiro que, sem um seguimento pormenorizado, é impossível medir a evolução do quadro (será que o tumor regrediu ou só alguns sintomas foram aliviados provisoriamente?). Quarto que não dá pra saber se uma eventual recuperação veio da promessa testada, de um tratamento anterior ou de qualquer intervenção adotada, às vezes inconscientemente. Quinto que, sem comparar a ação do princípio ativo com a de uma substância inócua, fica complicado descartar o efeito placebo - e, sim, a crença do indivíduo de que está ingerindo algo capaz de salvá-lo inclui inclusive em problemas graves como o câncer. E por aí vai..."


"Esses anos sem pesquisa clínica são um desperdício. Se a fosfoetanolamina é boa, perdemos tempo para aplicá-la em mais gente. Se é ruim, colocamos brasileiros em risco desnecessariamente', comenta Hoff. Renato Meneguelo, médico escolhido por Chierice para examinar o composto, fez um desabafo sobre o tema na audiência no Senado: 'Eu queria dar continuidade às fases clínicas. Bati em muitas portas e 'nãos' eu recebi'."


"Aqui o enredo fica nebuloso de novo. Em 2008, ele se reuniu com integrantes do Hospital Sírio-Libanês para debater a realização da pesquisa, mas não chegaram a um acordo. 'Eles tinham uma visão diferente sobre a forma de conduzi-la', informa Hoff. Questões como a forma de produção da fosfo - feita em um lugar sem infraestrutura para cumprir regulações sanitárias - teriam travado o acerto. Algo semelhante ocorreu com a Fiocruz. Só que, nesse segundo episódio, Chierice e Meneguelo acusam a instituição de exigir cessão das patentes para viabilizar os estudos. E realmente há um e-mail da Fiocruz em que esse ponto é assinalado."


"Apesar de tudo, o Instituto do Câncer do Estado de São Paulo, o Laboratório Farmacêutico do Rio Grande do Sul e o Instituto Nacional do Câncer realmente se colocaram à disposição para os testes. O médico Antonio Carlos Buzaid, chefe do Centro Oncológico Antônio Ermírio de Moraes, também atesta que 'nossa instituição tem como sediar a fase 1 de uma pesquisa com a fosfoetanolamina'. Pois é, já passou da hora de tirarmos o foco de polêmicas e dar os próximos passos."

"SÓ PODIA SER NO BRASIL?"

"Tanta discussão traz à tona questões centrais sobre a saúde nacional. Uma das mais quentes envolve a morosidade das agências que autorizam estudos com moléculas experimentais em homens e mulheres. Se na Europa essas entidades precisam de dois meses para liberar o início de um trabalho, por aqui são gastos 365 dias. 'Isso faz com que os cientistas avaliem drogas em outros locais', lamenta Antonio Britto, presidente da Associação da Indústria Farmacêutica de Pesquisa. E qual o problema? 'Num ensaio, o voluntário recebe uma terapia promissora de graça, além do acompanhamento necessário. Isso desafoga o sistema de saúde e formenta a ciência', resume Gustavo Fernandes, presidente da Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica. Em um Brasil hipotético onde é fácil trazer pesquisa, o acesso a novas medicações cresceria. Com isso, mais gente que já passou por tratamentos convencionais recorreria a esses testes em vez de cair no desespero - e, aí, ingerir uma cápsula sem aval científico. Que a controvérsia da fosfo abra nossos olhos para tudo que atravanca uma saúde de qualidade no país."


A matéria acima foi retirada da revista SAÚDE É VITAL, nº 396, págs. 48, 49, 50, 51, 52 e 53. Novembro de 2015. Todos os direitos autorais são reservados exclusivamente à revista SAÚDE É VITAL e a Editora Abril.


SUGESTÃO

Após a leitura, sugerimos que assista ao vídeo aonde Roberto Cabrini, do Conexão Repórter, do SBT, comenta sobre a polêmica do caso. A reportagem está dividida em três partes. As imagens são do You Tube, e o idioma é o português. 






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