CONHECIMENTO CEREBRAL DESTACA MEIO AMBIENTE!


"O MAPA DA DESTRUIÇÃO"
"Acompanhada de um biólogo, VEJA fez a viagem de mais de 700 quilômetros entre Mariana, em Minas Gerais, e Linhares, no Espírito Santo, para medir os reais danos ambientais de cada ponto atingido pelo amargo rio de lama que avança desde o rompimento da barragem de Fundão"


Por: Pieter Zalis (texto) e Jonne Roriz (foto)

"Na galeria de tragédias evitáveis que o Brasil mantém insistentemente aberta, o quadro mais novo é uma natureza morta. Ao desembocar no litoral do Espírito Santo em 21 de novembro, um sábado, o rio de lama e rejeitos químicos que vazou com o rompimento do dia 5, da barragem de Fundão, de propriedade da mineradora Samarco, em Minas Gerais, concluiu a pintura de um cenário de rara devastação. Na semana passada, VEJA percorreu mais de 700 quilômetros entre Bento Rodrigues, subdistrito de Mariana (MG), onde fica a barragem, e Regência,  no município de Linhares (ES), para desenhar a cartografia do desastre, sobretudo ambiental, que atingiu a região. Com o objetivo de registrar com apuro científico, os danos à natureza, a revista convidou para a expedição o biólogo André Ruschi, mestre em ecologia pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e diretor do Instituto Estação Biologia Marinha Augusto Ruschi (ES). São dele as análises que aparecem ao longo desta reportagem, em destaque e entre aspas, junto ao mapa com a localização da área comprometida. Na infância, o biólogo capixaba, de 60 anos, já acompanhava o pai, o naturalista Augusto Ruschi, um dos pioneiros do ambientalismo no Brasil, em seus estudos pela bacia do Rio Doce, dramaticamente atingida pelo acidente.
'É de surpreender que o príncipe da criação, o ser humano, seja capaz de transformar cenários de vida em cenários de morte e desolação', afirma Ruschi, com o rigor próprio dos cientistas momentaneamente estancado pela incontornável emoção provocada pelo impacto da visão de Bento Rodrigues, um povoado de 317 anos, onde se erguiam 200 casas, aniquiladas pela força do lamaçal. Soterradas hoje pelo barro seco, elas deixam flagrar, aqui e ali, as formigas em profusão, um galinheiro com aves inexplicavelmente vivas, o que restou de um eletrodoméstico, uma fotografia na parede, um automóvel no telhado. 'Quando vi meu carro naquele teto, eu me assustei. A casa fica a 15 metros de onde o automóvel estava estacionado antes da catástrofe', conta Manoel Jonathan Filho, 27 anos, topógrafo, morador da localidade e dono do veículo que parece voar na foto de abertura desta reportagem. Manoel, como tantos, perdeu tudo o que tinha, e há algumas semanas se movimenta para tentar obter alguma compensação da Samarco - dividindo seu tempo entre essa empreitada e o tratamento de um câncer no pulmão, descoberto há um ano e meio. 'Comprei o carro justamente para facilitar os deslocamentos que meu estado de saúde exige', explica ele."


"Os 62 bilhões de litros de rejeitos despejados na região pelo acidente - equivalente a 25 000 piscinas olímpicas - levaram pouco mais de duas semanas para percorrer 879 quilômetros até Linhares. Cento e vinte nascentes foram soterradas no caminho, pelo menos doze pessoas morreram (onze ainda estão desaparecidas), outras 600 perderam suas casas e mais de 300 000 tiveram o abastecimento de água prejudicado. Alguns especialistas levantam a hipótese de que a região onde se encontrava o subdistrito de Bento Rodrigues vire um deserto. O resíduo de mineração é tóxico, ou seja, nada mais crescerá por ali. A maior preocupação dos ambientalistas, no entanto, é mesmo com a bacia do Rio Doce, que abastece meio milhão de pessoas e já sofria com o assoreamento antes do desastre. Os rejeitos e a lama vindos da barragem devem agravar o problema, dificultando o acesso de pescadores e a entrada de peixes que se reproduzem naquela área. Como a lama acaba com a transparência da água, impedindo que a luz chegue ao fundo, e obstrui a absorção de oxigênio, ela sufoca os peixes, além de bloquear a fotossíntese das plantas. Depois do rompimento da barragem, sobraram apenas 500 metros de água limpa - a distância entre a nascente e a mineradora."


"Se a retirada de mais de 11 toneladas de peixes mortos do Rio Doce fez com que se dissipasse do trajeto o forte cheiro característico do animal, outros sinais atestam o tamanho do dano à natureza. Não se avista pelo caminho a movimentação de peixes nem de anfíbios. Aves comuns à região, como as garças, só são vistas esporadicamente em áreas que deveriam estar servindo de celeiro para ninhos durante a época de procriação. Os crustáceos também desapareceram, e a enorme quantidade de conchas encontradas ao longo do caminho revela que os pequenos moluscos também foram mortos pela tragédia. 'Antes, devido à poluição humana, o Rio Doce já precisava ser recuperado. Agora, o dever é ressuscitá-lo', diz Ruschi."


"Se, antes de 5 de novembro, a ferrovia que ligava Minas Gerais ao Porto de Tubarão, no Espírito Santo, era dominada pela presença do carregamento de minério que saía das jazidas mineradoras para chegar ao mar, alguns vagões hoje passam por lá transportando caixas-d'água para abastecer as cidades em situação de grave crise hídrica. Nenhum município sofreu tanto com a falta de abastecimento quanto Colatina, no Espírito Santo. Em bairros como Fioravante Marino, os moradores relatam que estão sem água desde que a lama atingiu o município, em 18 de novembro. Filas de pessoas segurando galões se formam em torno das dezenas de carros-pipa que circulam sem parar pela cidade, e moradores precisam descer e subir íngremes ladeiras para se aproximar dos pontos de abastecimento. Em alguns bairros houve protestos, com pneus queimados e tiros de balas de borracha disparados por policiais."


"Outra preocupação dos ecologistas agora é com o impacto causado pela lama que desaguou no mar, na altura da cidade capixaba de Linhares, interditou praias e se espalhou por 15 quilômetros mar adentro. Diz o médico-veterinário Milton Marcondes, diretor de pesquisa do Projeto Baleia Jubarte: 'Logo no encontro entre o Rio Doce e o mar ficam na Reserva Biológica de Comboios e o limite sul do Banco dos Abrolhos, área marinha de biodiversidade riquíssima. Duas espécies de cetáceo mostram-se potencialmente vulneráveis: a toninha e o boto-cinza. Ambas estão ameaçadas de extinção e utilizam a região para se alimentar e reproduzir. Estima-se que existam menos de 1000 espécimes de toninha naquele local específico'. A baleia jubarte, felizmente, não deve ser afetada. 'Essa espécie evita água turva, já estão saindo do Brasil em direção a ilhas subantárticas e não se alimenta em mares do país: logo há menos risco de contaminação', complementa Marcondes."


"Apesar de a Samarco afirmar que o rejeito que se espalhou não é tóxico, pois é composto basicamente de sílica (areia) proveniente do beneficiamento de minério de ferro, laudos de prefeituras e órgãos responsáveis pelo tratamento de água em Minas Gerais e no Espírito Santo apontaram níveis elevados de arsênio, chumbo, cromo, bário, manganês e outros metais pesados. Na última quarta-feira, a Organização das Nações Unidas (ONU) divulgou um comunicado desmentindo a empresa. Segundo o órgão, 'novas evidências' atestam que o resíduo é tóxico e contém alta concentração de metais e componentes químicos prejudiciais à saúde humana. Por meio de nota encaminhada por sua assessoria de imprensa, a Samarco reiterou: 'Lados do Serviço Geológico do Brasil (CPRM) e da empresa especializada SGS Geosol atestam que os rejeitos não oferecem riscos à saúde humana e ao meio ambiente. Análises dos sedimentos do Rio Doce e do rejeito proveniente da barragem do Fundão, operada pela Samarco, mostram que em nenhum dos materiais há aumento da presença de metais que poderiam contaminar a água'. As informações desencontradas e a desconfiança - em que pese o fato de que fatores sem nenhuma relação com o acidente possam, num determinado momento, alterar os resultados das análises - levaram um grupo de ambientalistas a iniciar um crowdfunding na internet para custear a produção de um relatório de impacto ambiental independente."


"Depois do acidente, ficou claro que a Samarco, uma joint venture da brasileira Vale com a anglo-australiana BHP Billiton, estava informada dos riscos da ruptura da barragem de Fundão. Na sexta-feira 27, o governo federal e os estados de Minas Gerais e Espírito Santo anunciaram uma ação judicial de 20 bilhões de reais contra o trio de empresas. Em 2013, a Samarco foi avisada de problemas pelo Instituto Pristino, uma organização sem fins lucrativos que realizou estudos no local a mando do Ministério Público Estadual. Alguns anos antes, em 2009, a empresa Rescue Training Internacional (RTI) já tinha sido contratada pela própria Samarco para prestar consultoria na área de emergência. Na ocasião, foi sugerido realizar as medições com apoio de telemetria. Essa tecnologia permite monitorar interruptamente qualquer movimentação dentro da barragem, como índice de chuvas, quantidade de rejeitos químicos ou deslizamento de terra. O plano ficou engavetado porque era caro."


"Muito provavelmente, houve negligência combinada com as precárias regulamentações brasileiras no setor de mineração. Mesmo em países em grau similar de desenvolvimento, como Chile e Rússia, já não permitem barragens como as existentes na região de Mariana. Tecnologias mais modernas possibilitam, por exemplo, o espessamento dos rejeitos ao eliminar até 90% da água contida na lama, dispensando a necessidade de enormes barragens. 'As técnicas brasileiras são antiquadas', diz Roberto Galéry, professor do Departamento de Engenharia de Minas da Escola de Engenharia da UFMG. 'Temos um país extrativista com baixíssimo investimento em tecnologia', acrescenta."


"Dados do Ministério de Minas e Energia mostram que, no ano passado, pouco mais de 30% das 735 barragens existentes em Minas Gerais foram inspecionadas. Na última década, o estado sofreu cinco rompimentos de barragem. A frouxa fiscalização da atividade de mineração parece ser um reflexo do que 60% das exportações do Brasil são commodities. O setor mineral sozinho representa 21% do total das exportações. No município de Mariana, 80% da arrecadação é proveniente da atividade mineradora, o que levou o prefeito Duarte Junior (PPS) a declarar que, sem ela, a cidade 'fecha as portas'. 'Dada a causa, a natureza produz o efeito no modo mais breve em que pode ser produzido', acreditava o artista, engenheiro e cientista italiano Leonardo da Vinci (1452-1519). No caso da tragédia evitável do rompimento da barragem de Fundão, como pode atestar o mapa de devastação percorrido por VEJA, não foi diferente."

COM REPORTAGEM DE FERNANDA ALLEGRETTI


A matéria acima foi retirada da revista VEJA - edição 2 454 - Ano 48 - nº 48, págs. 84, 85, 86, 87, 88, 89, 90 e 92. 02 de dezembro de 2015. Todos os direitos autorais são reservados exclusivamente à revista VEJA e a Editora Abril.


SUGESTÃO

Após a leitura, sugerimos que você assista a reportagem especial produzida pelo Domingo Espetacular, que retrata o começo da tragédia. As imagens são do You Tube e o idioma, é o português.


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