CONHECIMENTO CEREBRAL DESTACA CONFLITO INTERNACIONAL!

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A seguinte matéria é de autoria do colunista Duda Teixeira, publicada em 09 de setembro de 2015 pela revista Veja. Portanto, todas as informações pertencem exclusivamente à revista e seus autores, e não devem ser copiadas sem a divulgação de seus nomes.


"O MAUSOLÉU DA PAZ"
"Aylan Shenu, de 3 anos, morreu no berço da história, as ondas do Mediterrâneo lançaram seu corpo inerte nas areias de Bodrum. A antiga Halicarnasso, Terra de Heródoto que no século V a.C. compilou relatos épicos e de guerras. Aylan nasceu na Síria já imersa em conflitos sangrentos. Ele não conheceu a paz."



"QUEM PODERÁ AFIRMAR COM certeza que Heródoto, o filho mais famoso de Halicarnasso, hoje Bodrum, na Turquia, não tenha chutado distraído uma caminhada pela praia um dos seixos que cercavam o corpo de Aylan Shenu? Como a injustiça e as guerras, os seixos resistem indiferentes ao passar dos séculos. Heródoto viveu 59 anos no século V a.C. Foi o primeiro a fazer relatos realistas, minuciosos e críticos de eventos da Antiguidade clássica. É chamado de 'o pai da história'. Aylan tinha 3 anos. Todos eles vividos sob a guerra civil síria, um conflito do século XXI mais bárbaro e desumano do que os narrados por Heródoto, que tiveram lugar há mais de 2 500 anos, quando inexistiam conceitos como direitos humanos, respeito à vida ou proteção às crianças. Hoje esses conceitos são automaticamente recitados pelos homens públicos. Aylan morreu sem desfrutar nenhum deles."


"Há uma pequena chance de que a morte de Aylan seja o marco do limite máximo do descaso com a maior tragédia humanitária de nosso tempo, a dos imigrantes que se lançam ao mar em embarcações precárias depois de perder a própria pátria. O bote de 5 metros de comprimento e que o menino sírio viajava com os pais e o irmão mais velho embarcou a caminho da Ilha de Cos, na Grécia. Eles fugiam dos terroristas do Estado Islâmico, que, em nome da construção de um califado, matam pessoas de todos os credos, torturam e estupram. Fugia, também das forças do ditador Bashar Assad, que bombardeiam o próprio povo com armas químicas. Quando Aylan nasceu, a Síria já estava em guerra civil. Ele morreu sem conhecer a paz."



"Somente neste ano, cerca de 2 600 pessoas morreram tentando chegar à Europa pelo mar, das mais de 300 000 que encararam a travessia. Nos últimos dias, as multidões atravessando fronteiras um pouco mais do que a roupa do corpo em trens, a pé ou de bicicleta abriram, com a força do maior fluxo de refugiados desde a II Guerra Mundial, fendas nas bem guardadas fronteiras dos países europeus. Os que sobrevivem à travessia não são bem-vindos na Europa. Eles são muitos. São pobres. Muito diferentes. São vistos como ameaça. 'Os que estão chegando cresceram em uma outra religião e representam uma cultura radicalmente diferente. A maioria deles não é cristã, mas muçulmana. A Europa tem uma identidade enraizada no cristianismo', disse Viktor Orban, o primeiro-ministro húngaro, cujo governo está terminando uma cerca de arame farpado na fronteira de seu país com a Sérvia para impedir a entrada de novos clandestinos. A reação de Orban reflete o sentimento de um número expressivo de moradores da Europa. Os europeus têm boas razões para reagir defensivamente. Os imigrantes não têm alternativa. A situação em que os dois lados de um conflito possuem razões legítimas e lutam para impô-las à força tem o nome de tragédia."



"Palco de duas guerras mundiais, revoluções sangrentas e conflitos étnicos recentes, a Europa está cansada de tragédias. Essa é a chance de que a morte de Aylan seja um marco de mudança para melhor na situação dos fugitivos. A chanceles alemã Angela Merkel, com o bom-senso e a determinação que a caracterizam, falou como uma líder: 'Sr a Europa falhar na questão dos refugiados, essa não será a Europa que sonhamos'. Do cenário de desolação e abandono deixado pela II Guerra Mundial os europeus se reergueram com a ambição de ser a antítese do passado intolerante e sangrento. 'A dignidade humana é inviolável. Respeitá-la e protegê-la é dever de toda autoridade do Estado', lê-se no primeiro artigo da Constituição alemã de 1949."



"As regras para acolher refugiados, definidos como aqueles que deixam seu país por enfrentar situações de perigo iminente, foram sedimentadas nos anos 1950. Entre os que se beneficiaram delas estavam muitos exilados das ditaduras militares na América Latina. Na década de 90, após a desintegração da União Soviética, os líderes da União Europeia viram uma oportunidade para espalhar sua visão democrática e humanitária. Um grande teste veio já em 1992, com o esfacelamento da Iugoslávia e a guerra na Bósnia. Naquele ano 850 000 pedidos de asilo foram apresentados na Europa e nos Estados Unidos. 'O mundo está muito perto de ver esses números se repetindo', diz o cientista político americano Rey Koslowski, especialista em migrações. Até o fim deste ano, só a Alemanha espera receber 800 000 pedidos de refúgio.
O início dos movimentos como Primavera Árabe, em 2010, levou muitos europeus a sonhar com um futuro melhor no Oriente Médio e no norte da África. O ocidente aplaudiu as manifestações contra ditadores no Egito, na Líbia, na Síria, na Tunísia e em outros lugares. Na deposição do líbio Muamar Khadafi, a França e a Inglaterra tiveram participação militar direta. Atualmente, porém, de todos esses países, apenas a Tunísia tem alguma democracia. O Egito renovou sua ditadura militar. A Líbia está dividida em dois governos e virou a meca do tráfico humano. A Síria enterrou-se em uma guerra civil. Na esteira dessas disputas, quem mais se fortaleceu foi o grupo terrorista Estado Islâmico."



"Fora da região, nos últimos cinco anos, surgiram ainda oito crises de refugiados na áfrica, uma da Europa (na Ucrânia) e três na Ásia. A maioria dos deslocados permanece por perto, em outras cidades ou países vizinhos, na esperança de conseguir retornar para casa em breve. Por isso, quase nove em cada dez refugiados vivem em regiões pobres. 'As pessoas sempre movem para as menores distâncias possíveis', diz a geógrafa alemã Nikola Sander, do Instituto Vienna de Demografia. Além da esperança de poder voltar ao lar o mais rápido possível, há duas explicações para esse comportamento: primeiro, o desejo de viver no mesmo contexto cultural, religioso e linguístico de suas origens e, segundo, o elevado custo de viajar para longe. 'A Turquia e o Líbano abrigam mais civis deslocados do que os países europeus. Os refugiados que vão mais longe são mais ricos do que a média', diz Marc Rosenblum, do Instituto de Política Migratória, em Washington. O pai do menino Aylan, Abdullah Shenu (nos jornais turcos, a família foi identificada com o sobrenome Kurdi, uma referência à etnia curda, à qual pertencem), era um barbeiro em Kobani. Vivia em Damasco quando a guerra se acirrou e mudou-se para Aleppo, uma cidade conhecida pela oposição a Bashar Assad. No início deste ano, quando o Estado Islâmico foi expulso de Kobani, uma cidade de maioria curda na fronteira com a Turquia, os Shenu retornaram à cidade natal. Em junho, os terroristas voltaram e a família fugiu para a Turquia e começou a alimentar o sonho de chegar ao Canadá. 'Ao pensarem em um santuário para recomeçar a vida, os refugiados costumam procurar países onde o governo é estável, sem regimes militares e onde prevaleça uma sensação de segurança e prosperidade', diz o historiador americano Stephen Mihn, da Universidade da Geórgia. Em suma, vão em busca de países capitalistas." 



"O atual fluxo de refugiados expôs um dos paradoxos da integração europeia. É possível viajar sem passar por controles de fronteira entre muitos dos países da região, mas as regras de concessão de asilo e refúgio não são unificadas. Isso provoca uma grande confusão. Na Alemanha, o país mais almejado pelos refugiados, quem vem de uma nação em guerra quase sempre consegue autorização de residência provisória. Nos quatro primeiros meses deste ano, apenas três de um total de 20 000 sírios tiveram o pedido recusado. Moradores da Sérvia e da Macedônia, que já contaram com essa chance, hoje não a têm mais, porque esses países já são considerados seguros para viver. Metade dos refugiados que chegam à Alemanha possui alguma qualificação, que pode ser um diploma universitário ou um curso técnico. Em um período de três anos, eles precisam apresentar-se novamente às autoridades. Se seu país de origem ainda estiver mergulhado em caos, receberão um visto de residência permanente.
O problema é que, apesar de ser relativamente fácil conseguir asilo na Alemanha - e também na Suíça, na Dinamarca e na Suécia -, algumas nações que  são porta de entrada da Europa estão se recusando a registrar os refugiados. Segundo o Acordo de Schengen, de 1985, que eliminou as barreiras fronteiriças entre os países europeus e permitiu a livre circulação de pessoas, as nações nas bordas do bloco encarregadas de reforçar a segurança e, ao mesmo tempo, cadastrar todos que por ali chegam. Ao serem inundadas de refugiados e migrantes, a Itália, a Hungria e a Grécia passaram a declinar da obrigação. Temem quem após receberem os documentos, muitos fiquem por ali mesmo."




"Diante do impasse, Angela Merkel passou a propagandear com mais força a adoção de um sistema de cotas pelo qual cada país se compromete a receber uma quantidade determinada de estrangeiros. O cálculo seria de acordo com dados econômicos. 'Seria um sistema parecido ao que já é posto em prática na Alemanha, onde os candidatos a asilo são distribuídos equanimemente pelos estados', diz o economista alemão Unif Rinne, vice-diretor de pesquisa do Instituto para o Estudo do Trabalho, em Bonn. Com a proposta, a Alemanha pretende liderar a questão em duas frentes. Primeiro, mostra-se disposta a continuar sendo um dos mais abertos países a quem foge de catástrofes humanas. Segundo, chama seus pares a assumir uma parcela maior de responsabilidade, dividindo o ônus de abrigar os refugiados. Se o sistema de cotas for adotado, a Alemanha terá de acolher um número apenas 15% maior de pessoas. A Grécia, 75% a mais. A Suécia, 275%. Na sexta-feira 4, porém, os governantes da República Tcheca, Eslováquia, Hungria e Polônia reuniram-se e posicionam-se contra o sistema de cotas proposto pela Alemanha."



"Postura distinta teve o primeiro-ministro inglês David Cameron, que relutava em fazer concessões, mas, na semana passada, afirmou que seu paós poderia receber mais gente. A Inglaterra é um dos países onde a rejeição a estrangeiros é mais latente. Um levantamento divulgado em junho pela empresa de pesquisa de opinião YouGov concluiu que 42% dos ingleses rejeitam o acolhimento dos que fogem das guerras. Há uma esperança, tênue, de que a chocante foto de Aylan ajude a mudar o posicionamento. Na internet, espalharam-se montagens da imagem com críticas políticas, como a que colocava a cena do menino no centro de um fórum com líderes árabes. Os principais jornais europeus pediram, na capa, uma ação dos governos e lançaram campanhas em prol dos refugiados. Na Inglaterra, uma petição do The Independent para que o país abra mais suas fronteiras teve mais de 200 000 apoiadores.
Uma das propostas da União Europeia para mitigar o problema é combater os contrabandistas responsáveis por transportar os imigrantes até a Europa. Esses criminosos se aproveitam do desespero dos refugiados e cobram caro para levá-los em embarcações precárias. Como o pagamento é feito antecipadamente, não há garantia de que os refugiados chegarão ao destino a salvo. O pai de Aylan pagou 4 000 euros, o equivalente a 17 000 reais, para entrar com a família e um frágil bote na Península de Bodrum, durante a noite. Quando percebeu que a embarcação não ia resistir, o traficante turco que os conduzia fugiu a nado. Depois de uma hora, o bote virou. No dia seguinte, a polícia turca prendeu quatro suspeitos de atuar como traficantes de pessoas. A questão é que sobram mafiosos dispostos a fazer esse mesmo trabalho.



"Entre as propostas para solucionar o problema está a de financiar campos de refugiados em outros países, onde possa ser feita a triagem dos pedidos de asilo na Europa. Dessa maneira, os interessados poderiam ali saber se conseguiriam a documentação ou não, o que os pouparia de uma viagem clandestina. Em caso de negativa, eles poderiam desistir de se arriscar e tentariam asilo em outro país. A possibilidade, porém, de pedir asilo sem transpor milhares de quilômetros transformaria os campos de refugiados no Egito, no Líbano, na Turquia ou no Niger em imãs populacionais. 'Os campos atraíriam traficantes que minariam nas pessoas que tiveram o pedido recusado', diz Aspasia Papadopoulou, do Conselho Europeu de Refugiados Exilados.
O pai de Aylan, Abdullah, tentou salvar a mulher e os filhos, que não sabiam nadar. Não conseguiu. Abdullah ficou três horas na água até ser resgatado pela guarda costeira. Na sexta-feira 4, um comboio de carros entrou na Síria, pela Turquia, para enterrar os meninos e a mãe em Kobani. Talvez fosse simbolicamente mais forte ter enterrado Aylan em Bodrum, nas ruínas da tumba de Mausolo, um sátrapa do século III a. C., considerada uma das sete maravilhas do mundo antigo - e que deu origem à palavra mausoléu. Então, o túmulo do menino que nasceu e cresceu em meio a guerra poderia ficar conhecido como o Mausoléu da paz."

COM REPORTAGEM DE NATHALIA WATKINS E PAULA PAULI



A matéria acima foi retirada da revista Veja, edição 2442, ano 48, nº 36, págs. 68, 69, 70, 71, 72, 73, 74 e 75. 09 de setembro de 2015. Todos os direitos autorais são reservados exclusivamente à revista Veja e a Editora Abril.



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